Zahy Guajajara, 27, atriz da minissérie ‘Dois Irmãos’ e cacique
de uma aldeia no Maranhão.
Meu nome é Euzilene Prexede do Nascimento Guajajara, mas todos
me conhecem por Zahy, lua na língua guajajara, que faz parte da família
tupi-guarani.
Nasci na Reserva Indígena Cana Brava, Maranhão. Meu pai não é
índio, apenas minha mãe. Sou a única filha dos dois juntos, mas tenho mais de
trinta meios-irmãos, todos mais velhos.
Na aldeia, vivíamos da roça, da pesca e da caça. Meu pai caçava
veados, tatus e passarinhos e plantava arroz, milho, feijão etc. Tudo era
dividido com a aldeia.
Ele levava a mim e a meus irmãos para trabalhar também. Fomos
morar na cidade da Barra do Corda quando eu tinha 8 anos para que eu pudesse
estudar. Durante a minha infância, passamos por dificuldades financeiras, fome.
Eu ia para a escola e não tinha um caderno para usar, meu pai
remendava meus chinelos para eu poder sair. Essa é a realidade de muita gente
no Nordeste, porque é uma região seca, não tem onde caçar, onde plantar. É uma
dizimação completa, um abandono descomunal.
Tive dificuldade no meu primeiro ano na escola por não falar
português direito. Também foi difícil porque eu era muito tímida, não conseguia
fazer amizade, não sabia o que dizer.
As outras crianças zombavam de mim por ser indígena e isso me
chateava na época. Não terminei os estudos porque entrei em depressão aos 14
anos, depois que um irmão por parte de mãe se suicidou.
Ele era muito querido pela minha mãe, meu melhor irmão, mas
tinha problema com o alcoolismo e, quando bebia, mudava completamente. Quando
passava o efeito da bebida, ele chorava, pedia desculpa. No dia em que se
matou, ele havia bebido e bateu na minha mãe – eu a defendi e briguei com ele.
À noite, ele se enforcou. Eu fiquei perturbada, sonhava com ele,
me sentia culpada. Fiquei tão mal que cheguei a pensar em me suicidar também.
Aos poucos, fui me recuperando porque pensei que não podia me
destruir, tinha que cuidar da minha família. Sempre me senti responsável pelos
meus irmãos indígenas, mesmo sendo a mais nova.
Eu que resolvo tudo para eles, porque estudei, falo português
melhor. O que me ajudou na época foi procurar uma igreja batista.
Foi uma fase boa da minha vida, realmente tive um encontro com
Deus. Eu não tenho mais religião, mas respeito todas. Minha mãe hoje é
evangélica, mas continua a pajé da tribo. Eu tenho a minha fé. O nome do meu
deus é Tupã. Meu deus é um cacique e usa um cocar imenso na cabeça.
Decidi vir para o Rio de Janeiro aos 19 anos, quando conversei
pelo Orkut com primos que já moravam aqui, na Aldeia Maracanã, prédio ao lado
do estádio onde ficava o Museu do Índio, que havia sido ocupado por indígenas.
Entrei no ônibus e desatei a chorar – era uma decisão muito
louca, eu era muito matuta, nunca tinha saído daquela região. Ao chegar, três
dias de viagem depois, foi um deslumbramento total, fiquei encantada com tudo.
Comecei a me envolver com o ativismo indígena, ia para escolas falar sobre
nossa cultura, participava de manifestações contra a demolição da Aldeia
Maracanã.
Foi por causa da divulgação de fotos e vídeos dos protestos na
internet que me viram e me chamaram para fazer teste para Dois Irmãos. Eu nunca
tinha feito nada como atriz.
"O nome do meu deus é Tupã. Meu deus é um cacique e usa um
cocar imenso na cabeça"
Depois de Dois Irmãos, gravei um longa do Felipe Bragança, Não
Devore Meu Coração, que passou pelo Festival de Sundance e vai ser exibido no
Festival de Berlim, e um média-metragem, Sociedade da Natureza, do português
Pedro Neves Marques.
Os dois devem estrear neste ano. Também estarei em uma peça de
teatro, Jamais ou Calabar, do Jorge Farjalla, em cartaz entre junho e agosto.
Com o dinheiro dos trabalhos, pude ajudar a minha família. Eu
vivo pelo meu povo, quero mostrar que os índios também podem fazer tudo.
Visito a reserva indígena todo ano e as coisas estão um pouco
mudadas: já tem energia elétrica, escola, postos de saúde. Sou cacique de uma
aldeia que fundei há quatro anos.
Vejo grande diferença entre ser mulher na reserva e na cidade.
Na aldeia, fazemos as mesmas coisas que os homens e há várias caciques.
Na cidade, se tem uma mulher com um short curto na rua, ela já é
considerada vagabunda. Os homens acham que podem falar e fazer o que quiserem.
Mulheres são abusadas diariamente, às vezes pelo próprio
namorado. Ela pode não querer transar, mas se sentir obrigada a isso. Eu passei
por isso com um namorado, sofri chantagem emocional. Terminamos o
relacionamento depois.
Além de atuar, escrevo poesias, em português e tupi-guarani, e
quero lançar um livro. Devo começar a faculdade de cinema neste ano e quero
trabalhar nas aldeias, transformar os índios em atores. Faltam oportunidades.
Tenho vários projetos, sonhos que ninguém me tira.
Depoimento
colhido por Meire Kusumoto
Foto por
Daniel Ramalho
Na minha
aldeia, as mulheres são iguais aos homens.
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