COALIZÃO, MA NON TROPPO
Houve ou não vítimas civis dos bombardeios sobre a Líbia? As fissuras entre os países da aliança chamada a reforçar a zona de exclusão aérea na Líbia se aprofundaram uma semana após a Resolução 1.973 do Conselho de Segurança, adotada dia 17.
Na ONU, dia 24, parte da coalizão em sua maior parte ocidental, e cada vez com menor apoio da Liga Árabe, exigia o cessar-fogo na Líbia. Motivo: os ataques aéreos destinados a neutralizar a aviação do coronel Muammar Kaddafi teriam provocado a morte de numerosos civis.
China e Rússia, mas também Brasil, Índia e Alemanha, os cinco países que se abstiveram na votação do Conselho de Segurança, martelavam a necessidade do cessar-fogo. Enquanto isso, ONGs e jornalistas em cidades líbias garantiam não ter provas de que houve mortes de civis causadas por bombardeios da coalizão. Dados, de um lado ou do outro, difíceis de averiguar.
Já no Conselho Europeu, em Bruxelas, chefes de Estado e de governo debatiam qual seria a mais adequada estrutura de comando para a coalizão. O mesmo tema voltaria a ser discutido numa reunião na próxima semana em Londres, a primeira do grupo de contato sobre a Líbia.
 Se o comando militar da ONU parecia ter passado para a Otan, a pedido de Barack Obama, secundado pelo primeiro-ministro britânico, David Cameron, o ministro francês das Relações Internacionais, Alain Juppé, repetia: “É importante deixar claro que a política de operação na Líbia deve ser pilotada pelo grupo de contato, não pela Otan”.
Enquanto a Líbia era o principal assunto em Bruxelas e Washington, o presidente sírio, Bachar el-Assad, lidava com o maior desafio desde sua chegada ao poder, 11 anos atrás. A guarda republicana, forças pretorianas do governo, atacou, dia 23, manifestantes em Deera, 100 quilômetros ao sul de Damasco. Houve 37 mortes. Na noite anterior, seis pessoas foram mortas durante um funeral em uma mesquita. E mais 12 haviam sido executadas por franco-atiradores na semana anterior.
Ao contrário de manifestações no Iêmen- e no Bahrein, o povo sírio não quer, porém e pelo menos por ora, se desfazer de Assad. Reivindica o fim do estado de emergência que se prolonga há quase cinco décadas, dos excessos cometidos pelos serviços de segurança, da corrupção, do elevado custo- de vida.
Pede melhores perspectivas para uma juventude envolvida na globalização. “Assad não é malvisto pelos jovens porque, ao assumir a Presidência, tentou implementar reformas”, diz Ahmad Moussalli, da Universidade Americana de Beirute, falando com CartaCapital pelo telefone.
Segundo o cientista político libanês, o entrave para Assad é o fato de a inteligência militar ser poderosa e contrária a reformas. Este, diz Moussalli, seria um momento propício para o presidente tentar realizá-las.
 O fato de que ele e a liderança política do país são alauítas, seita xiita, não seria um problema como no Bahrein, onde 70% da população é xiita e a elite política, sunita. “A questão-chave na Síria são as reformas”, sublinha Moussalli.
Desde o início das manifestações, Assad determinou a libertação de 15 jovens presos por conta de seus grafites revolucionários em muros de Daraa. O presidente também cedeu a pedidos dos manifestantes ao demitir o governador da região de Daraa. E dia 24 o governo sírio anunciava uma série de reformas.
Já em Sanaa e Manama, capitais do Iêmen e do Bahrein, massacres têm sido perpetrados pelos respectivos governos, com a intervenção de tropas e armas, aviões, helicópteros e barcos chegados da Arábia Saudita, dos Emirados Árabes Unidos e do Kuwait. Washington e Bruxelas preferem, ao contrário da ação contra Kaddafi, recorrer à diplomacia no Golfo Pérsico. A explicação dessa diferença é fácil: Riad é ponto de apoio para Washington na região.
Dia 18, cerca de 50 pessoas foram mortas em uma manifestação em Sanaa.  A truculência do presidente Ali Abdullah Saleh, no poder há 32 anos, provocou renúncias de ministros, parlamentares, embaixadores e um importante general.
Saleh falou em “golpe” e “guerra civil”. E alertou, como Kaddafi, para uma reação por parte da Al-Qaeda, presente no país. Mas a questão é a seguinte: onde a Al-Qaeda não está presente?
Para Moussalli, o fato de a coalizão agir somente contra o ditador na Líbia demonstra como ela aplica diferentes princípios para situações semelhantes. “Esta é uma questão moral, não política”, argumenta. “Sou favorável a intervenções em países como o Iêmen e Bahrein porque não podemos ficar sentados assistindo a esses massacres contra populações.”
A questão a dividir, entre outras, integrantes da ONU e da Liga Árabe é esta: até que ponto uma intervenção como aquela que se dá na Líbia é eficaz? Outra questão, relacionada à primeira: qual é sua finalidade, dada a ambiguidade da Resolução 1.973? E ainda: esta é uma intervenção de curta ou longa duração? “Considere a síndrome do Iraque”, retruca Mokhtar ben Barka, da Universidade de Valenciennes. “A zona de exclusão aérea lá imposta durou dez anos.”
Em Paris, um diplomata argumentou para CartaCapital que os bombardeios são eficazes. “A zona de exclusão aérea foi fundamental para impedir um massacre dos rebeldes em Bengazi”, declara. Principal reduto das forças rebeldes, Bengazi continuava sob seu controle no fim desta semana. Além disso, as infraestruturas militares de Kaddafi foram, em sua maior parte, neutralizadas. Aviões de guerra, por tabela, já não podiam decolar.
Anunciou o general britânico Greg Bagwell: “Podemos agir com quase total impunidade sobre o território líbio”. Mas o quadro pintado por Bagwell parece não favorecer da mesma forma os rebeldes. Apesar das imagens de jovens a discursarem inflamados quando da chegada das forças da coalizão, a neutralização da aviação de Kaddafi não parece ter facilitado a conquista de Trípoli.
Os rebeldes não podem avançar sequer para recapturar cidades menores porque lhes falta estrutura de comando e treinamento militar. Tanques e artilharia pesada do ditador protegem cidades a leste da Líbia, como Ajdabiya, Brega, e ainda Ras Lanuf, mais para o oeste. Forças de Kad-dafi continuam a atacar Misrata e Zintan, a 200 e 90 quilômetros da capital líbia, respectivamente – e até o fim desta semana sob o controle dos rebeldes.
Para piorar o quadro, o Conselho Nacional de Transição da Líbia, reconhecido somente por Paris, parece não ter estratégia alguma. Em consequência dos limites da Resolução 1.973, a Líbia está dividida entre o oeste dominado por Kad-dafi e o leste, pelos rebeldes.
Recentes guerras na ex-Iugoslávia e no Afeganistão demonstraram que a luta ainda poderá se desenrolar por terra, desde que rebeldes se organizem e ponham em prática uma estratégia.
Existe a possibilidade de tropas ocidentais e árabes, como aquelas do Catar, entrarem em cena. Isso aconteceria em zonas onde as forças do ditador estivessem presentes em cidades e representassem ameaça para os civis.
A elasticidade do texto da Resolução 1.973 abre campo para manobras por parte da coalizão favoráveis a outros tipos de intervenção, como aquela de tropas de solo. E, para proteger civis, a própria execução de Kaddafi não pode ser descartada. Isso, claro, explicaria o fato de Kaddafi se esconder em bunkers e fazer raras aparições.
Certo é que, quando o tirano dá o ar da sua graça, o faz com suficiente eloquência. Num discurso, o “Guia” falou em “nova cruzada contra o Islã”. Países ricos, emendou, estariam atrás do petróleo da Líbia. Para Ben Barka, da Universidade de Valenciennes, esse tipo de intervenção pode surtir efeito no mundo árabe.
Uma longa guerra com efeitos desastrosos poderá ter grande impacto na opinião pública. E até em bolsões do mundo não árabe. No pior dos cenários, a Líbia poderia se tornar um Estado à deriva, como a Somália. E a Al-Qaeda, conforme alega Abdel Bari Atwan, do diário Gulf News, “prospera nesse tipo de ambiente”. Por outro lado, esta poderia ser, como crê o chanceler francês Juppé, uma “guerra curta”.
Foto: Ahmed Jadallah/Reuters
Gianni Carta
Gianni Carta é jornalista, correspondente de CartaCapital em Paris.

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