Como a criança se torna autônoma?
O desenvolvimento da autonomia está atrelado ao desenvolvimento
emocional de todo indivíduo.
Para atingir esse status, primeiro a criança precisa desenvolver
várias competências emocionais, como a noção de si mesma, consciência corporal
e capacidade de perceber o ambiente no qual ela está inserida – uma tarefa e
tanto!
Ou melhor, são várias tarefas, que vão acontecendo
paulatinamente desde o nascimento.
A psicologia e a psicanálise têm diversas teorias do
desenvolvimento e, por se tratar de um processo complexo, cada uma elege um
ângulo que será o fio condutor da teoria.
Para pensar a autonomia, considero muito ricas as contribuições
de Donald Winnicott (1896-1971), pediatra e psicanalista inglês, especialmente
o recorte que ele faz do processo de dependência rumo à independência
emocional.
Assim, as reflexões aqui apresentadas estão embasadas nessa
teorização.
Não há nenhuma novidade na afirmação que os bebês humanos nascem
em um estado de “dependência absoluta”*, e por isso precisa dos cuidados de
outros para sobreviver e dar continuidade ao processo de amadurecimento físico
e psíquico.
Os recém-nascidos toleram muito pouco as sensações de
desconforto e não conseguem identificar se estão sentindo fome, sono, frio ou
calor, por exemplo.
Os cuidadores têm aqui a importância fundamental de acolher o
bebê nesse estado de irritação e facilitar a minimização de tais desconfortos.
Mesmo que um cuidador não saiba de pronto porque o bebê está
chorando, pode tentar imaginar o que está acontecendo e através de tentativas e
eliminação de alternativas consegue fazer com o que o bebê saia da irritação e
possa experimentar outras sensações, como brincar ou dormir.
É na importância dada a esse acolhimento e satisfação dessas necessidades que está a
especificidade introduzida por Winnicott (em consonância com alguns autores da
psicanálise).
Trata-se não só da sobrevivência física como também do
desenvolvimento psíquico.
Essa capacidade de imaginar o que o bebê pode estar sentindo
promove uma sintonia entre os cuidadores e o recém-nascido, que aos poucos vai
dotando o cuidador de um conhecimento sobre o bebê: “tal choro é de fome”,
“esse resmunguinho é de cólica”, “esse mal-humor é porque não gosta de ficar
sentado”.
Se prestarmos atenção a essas falas tão corriqueiras, podemos
notar que as necessidades dos bebês são de ordens primitivas, mas também podemos
observar como vai emergindo o jeito de cada bebê ser no mundo.
Portanto, é importante que os cuidadores possam estar atentos a
esse bebê e confiar em seus próprios saberes (uma breve nota: é por esta razão
que o que “serve” para um bebê pode não “servir” para outro).
Do lado do bebê, é após a oferta de cuidado que ele descobre o
que estava lhe incomodando, e na repetição dessas experiências – se sente fome,
reclama e sabe que o leite lhe será oferecido – que a confiabilidade no
ambiente vai sendo alcançada.
Assim, na medida em que o bebê adquire algum saber sobre si
mesmo e sobre o ambiente que o cerca, transita para o estado de “dependência
relativa”*.
Nessa fase, a aquisição de conhecimento ajuda o bebê a prever
algumas situações; por exemplo, quando o bebê sabe que se o cuidador está
enchendo a banheira é porque é hora do banho; se começa a sentir um desconforto
e a mãe o posiciona de determinada forma, é porque será amamentado.
Além de perceber o ambiente, o bebê também começa a demonstrar
sinais da autonomia incipiente.
Usando os exemplos acima, podemos imaginar que um bebê que gosta
de tomar banho vai sorrir; pode reclamar e recusar a oferta do peito, se não é
fome o desconforto que está sentindo.
Essa nova capacidade do bebê possibilita que ele comece a
suportar algumas lacunas de tempo entre sua necessidade e a satisfação desta.
A mudança do bebê implica em mudança de atitude nos cuidadores.
Aquele estado de devoção inicial vai diminuindo, seja porque o bebê já começa a
diferenciar a comunicação de cada necessidade, seja porque o cuidador já
compreende melhor os sinais das necessidades do bebê, seja porque o cuidador
começa a ter outros interesses além do bebê – como o trabalho, cuidados da
casa, cuidados de si, novos projetos, entre outros inelencáveis interesses.
Essas pequenas separações vão abrindo espaço para o bebê se
experimentar, testar o ambiente, de forma a descobrir e criar sua própria
individualidade.
O desenvolvimento emocional se dá através do interjogo entre a
maturação biológica – relacionado à aquisição de competências motoras – e as
possibilidades que o ambiente e os cuidadores oferecem ao bebê.
Geralmente, por volta dos dois anos, a criança já internalizou a
linguagem (mesmo que ainda não fale), tem algum conhecimento sobre suas
preferências, tem noção da lógica do funcionamento dos ambientes que frequenta,
e com isso passa a perceber que ela é um ser individual, separado dos outros e
do mundo.
Nessa fase, as crianças costumam explorar e testar limites
corporais. Objetos são usados nas brincadeiras de maneiras diversas, deixando
de cumprir o fim esperado; por exemplo, um giz colocado em pé pode ser uma
torre.
Explora os limites do que pode ou o que não pode, algumas vezes
incorrendo nas famosas “birras”.
O cuidador continua tendo uma tarefa dupla: apresentar quais são
os limites seguros para a criança ao mesmo tempo que precisa dar espaço para a
exploração e criatividade.
Soma-se agora uma terceira tarefa: ajudar a criança a lidar com a
frustração.
Com esses aprendizados e aquisição de competências, as crianças
seguem seu desenvolvimento “rumo à independência”*, um aprendizado que continua
em curso até o fim de nossas vidas e vai se complexificando na medida em que as
fases da vida trazem novos desafios.
“Rumo à independência” porque independência absoluta é algo que
nós humanos jamais poderemos atingir.
A autonomia, portanto, é resultado do intercâmbio entre si e o
mundo: ter consciência sobre si mesmo – aspirações e necessidades – e buscar
meios plausíveis para realizar o que deseja, respeitando os outros e o
ambiente.
* Expressões
que se referem a conceitos na teoria winnicottiana.
Por Carla A.
B. Gonçalves Kozesinski