OS 50 SAMURAIS

 O que aprender com os técnicos da central de Fukushima, que decidiram enfrentar a morte por radiação para evitar uma catástrofe.
Umas 800 pessoas trabalhavam nas usinas nucleares de Fukushima, 250 quilômetros ao norte de Tóquio, antes do terrível terremoto de 8.9 graus na escala Richter seguido de um tsunami com ondas de 13 metros que arrasou a costa noroeste do Japão, na sexta-feira, 11 de março.
 Desde então, o mundo acompanha a luta desesperada dos 50 engenheiros e técnicos que se entrincheiraram na central de controle em Fukushima (750 pessoas foram retiradas do local), na tentativa heróica de resfriar os reatores das usinas 1, 2, 3 e 4, impedindo o seu derretimento e o vazamento de material radiativo.
 A hipótese ainda não está descartada. Apesar de ter conseguido recolocar em funcionamento os sistemas de refrigeração dos reatores 1, 3 e 4, a equipe registrou em 28 de março o vazamento de plutônio no solo abaixo do reator 2, o que seria um sinal do derretimento parcial do reator.
Caso o vazamento de plutônio seja confirmado, o acidente de Fukushima será equiparado ao pior acidente nuclear da história, a explosão da usina de Chernobyl, na Ucrânia, em 1986. O que acontecerá depois disto? O único precedente é Chernobyl.

Entre os operários e os bombeiros que apagaram o incêndio que se seguiu à explosão do reator de Chernobyl, assim como entre os membros das equipes de resgate, 237 pessoas foram diagnosticadas com doença radiativa aguda. Destas, 31 morreram até três meses após o acidente.
Um quarto de século após o maior acidente nuclear da história, uma área de 4.500 km² em torno de Chernobyl continua interditada e assim permanecerá até radiação que impregnou o solo voltar a níveis normais.
O que pode levar milhares de anos. A culpa é do plutônio, um subproduto da fissão nuclear do urânio nos reatores e o elemento químico radiativo mais perigoso à vida. A meia-vida do plutônio é de 24 mil anos, ou seja, a quantidade de plutônio (e seus níveis de radiação) no solo de Chernobyl reduzirá À METADE só daqui 24 milênios. Fontes não-oficiais indicam que a região de Chernobyl só voltará a ser segura aos humanos daqui 40 mil anos, no século 421.
Três semanas após o maior terremoto da história do Japão, há 11 mil mortes confirmadas, 16 mil pessoas continuam desaparecidas e o governo japonês precisou remover 200 mil pessoas que viviam e trabalhavam num raio de 30 quilômetros em torno das usinas de Fukushima.
 Nas próximas semanas e meses começarão a ser contabilizados os mortos entre os 50 homens que decidiram permanecer na usina para resfriar os reatores.
Duas dúzias de operários foram hospitalizadas desde o início da crise, a maioria com queimaduras devido às explosões dos prédios dos quatro reatores (há três desaparecidos). E, no dia 23, três operários foram hospitalizados com sinais de envenenamento radiativo. Eles tiveram contato direto com água vazada do reator 3.
“Estes homens são heróis”, me disse o físico brasileiro José Goldemberg, referindo-se aos 50 homens confinados em Fukushima. “São 50 kamikazes”, ouço falar o tempo todo, como se aqueles 50 heróis fossem 50 suicidas.
Todos são voluntários. Eles escolheram permanecer na usina para tentar prevenir uma catástrofe ambiental apesar dos enormes riscos a que estão expostos.
Eles sabem que muitos irão morrer, sabem que a morte por radiação não é uma coisa bonita de ver – e nem puderam se despedir pessoalmente de suas famílias. São 50 voluntários para enfrentar a morte. São 50 samurais.
O samurai do entardecer
Seibei Iguchi era um samurai de baixo escalão, que trabalhava como supervisor do almoxarifado do castelo de um daimiô, o senhor de um dos 60 feudos nos quais o Japão era dividido até meados do século XIX.
 A principal tarefa de Iguchi era assegurar a manutenção de um estoque estratégico de alimentos, essenciais para manter o castelo e sua guarnição na guerra, se o castelo fosse sitiado. Ao longo dos anos, Iguchi empenha-se para executar com perfeição a contagem e recontagem de sacas de arroz, verificar a qualidade dos grãos ou o nível dos barris de saquê.
Trata-se de um trabalho totalmente burocrático e repetitivo, algo que a princípio, nós, homens do globalizado século XXI, não esperaríamos ver sendo executado por um samurai, um membro da lendária classe de guerreiros que existiu no Japão por mais de mil anos.
Mas Seibei Iguchi é um samurai. Contar e recontar sacas de arroz é o que seus superiores esperam dele - mesmo que todos saibam que o sítio do castelo possa jamais acontecer.
Uma dama cuida da aparência do samurai Seibei Iguchi, preparando-o para o um duelo de vida ou morte.
Na época de Seibei, início do século XIX, o Japão estava em paz há mais de 200 anos. A última grande batalha havia sido travada na planície de Sekigahara, a meio caminho entre Osaka e Edo, a atual Tóquio.
 Em 15 de setembro de 1600, cerca de 300 mil samurais dos clãs de Osaka e de Edo, se trucidaram. Cerca de 40 mil samurais foram mortos no curto espaço de 24 horas, na maior batalha da história do Japão (na batalha de Okinawa, travada entre americanos e japoneses em 1945, foram 300 mil mortos em quase três meses de luta).
 De Sekigahara saiu vitorioso o daimiô de Edo, Tokugawa Ieyasu, que se tornaria o primeiro shogun, o protetor militar do império do sol nascente. Seus descendentes mantiveram a paz e governaram a nação por 250 anos. As centenas de milhares de samurais dos clãs aliados de Edo assumiram o controle dos daimiôs vassalos dos Tokugawa.
As centenas de milhares de samurais aliados a Osaka - e que sobreviveram a Sekigahara – perceberam-se de um dia para outro sem senhor, sem emprego e lugar para morar. Suas famílias se esfacelaram. Viraram ronins, samurais sem um senhor a servir.
Iguchi enfrenta um samurai em duelo
Os ancestrais de Seibei Iguchi lutaram ao lado dos Tokugawa. Mantiveram-se samurais, continuaram se adestrando e aperfeiçoando no uso da espada, enquanto paulatinamente iam assumindo funções burocráticas. Mas a ausência de guerras, de um inimigo por enfrentar, foi introduzindo pouco a pouco a erva daninha da preguiça.
Os samurais nunca abandonaram o estudo das artes marciais. No entanto, para a maioria, os treinos começaram a se tornar algo pró-forma, que devia ser cumprido, pois a habilidade do manuseio da katana era o mínimo que se esperava de um membro da classe samurai.
 Poucos eram os que treinavam com o coração, preparando-se para aquele momento que é o divisor de águas entre o civil e o guerreiro, o enfrentamento da morte.
O samurai do entardecer (“Seibei Iguchi”, 2002) é um filme japonês, ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro de 2003. Iguchi é um samurai humilde, de roupas puídas, que nunca acompanha os colegas, gordinhos, para o sakê depois do dia de trabalho.
 Seu soldo, insuficiente, tem outras prioridades. Iguchi é viúvo. Cuida sozinho das duas filhas pequenas e da mãe senil. Por seu aspecto mal-ajambrado, com a barba sempre por fazer, e por nunca acompanhar os colegas na bebedeira, estes começam a ridicularizá-lo.
Mas Iguchi não se importa. Ele sabe quais são as suas responsabilidades e o que se espera dele. Iguchi é um verdadeiro samurai - talvez o único do castelo. É a conclusão que chegamos, na medida em que o filme vai se aproximando do seu clímax.
Iguchi salta antes de dar o golpe final e terminar a luta.
O capitão da guarda do castelo era um homem reconhecidamente habilidoso no manuseio da espada. Mas, por alguma falta indesculpável, ele é obrigado pelo senhor a cometer harakiri, o suicídio ritual do bushidô, o código de conduta dos samurais.
 O capitão se recusa. O samurai que existia nele perdeu a alma. Só é técnica. Com ela, o renegado mata três homens encarregados de prendê-lo, e se entrincheira no interior de sua casa. Para a surpresa de todos, o clã chama Iguchi para terminar o serviço.
 Ele foi treinado no uso da wakizachi, a espada curta que confere vantagem no combate em ambientes fechados, onde o espaço é restrito para os golpes com uma katana.
 Iguchi se banha, barbeia-se, raspa os cabelos, veste seu melhor quimono e se despede da família. Está pronto para o combate, que sabe será de vida ou morte.
Iguchi vence. Apesar das aparências, ele é o samurai que preservou a honra e os ideais da nobre classe guerreira.
Seu opositor em algum momento abandonou o verdadeiro caminho do guerreiro. Iguchi tem os quatro fatores determinantes para vencer uma guerra, Ki, a energia para o combate, Ken, a técnica, Tai, a condição física - e Un, a sorte – ou a graça do destino, como preferirem.
Os 50 samurais
São estes ensinamentos, transmitidos de geração em geração por mais de mil anos no seio das famílias samurais, que acredito estarem por trás da decisão dos 50 homens de permanecer na usina de Fukushima.
Historicamente, a classe samurai somava 9% dos japoneses (a imensa maioria eram camponeses). Em 1868, com o final do shogunato, a família Tokugawa perde o poder, restituído ao imperador do Japão.
 Naquele ano o imperador Meiji abole oficialmente a classe samurai. Eles são proibidos de portar espadas e suas escolas de artes marciais são abolidas.
A maioria dos estilos de artes marciais dos samurais (havia mais de 700) se perdeu. Uns poucos foram preservados em segredo para florescer novamente em nossos dias. Quem preservou as técnicas antigas foram as famílias samurais.
 Os samurais foram extintos enquanto casta. Suas famílias, não. Elas preservaram seu legado. Seus membros sabem que seus antepassados foram guerreiros. Cerca de 10% dos 127 milhões de japoneses pertencem a famílias samurais.
 É quase certo que, entre os 50 homens na sala de controle da usina de Fukushima, há filhos de famílias samurais. Eles têm um passado a honrar. Tal qual seus antepassados guerreiros, os homens de Fukushima estavam preparados para abrir mão da própria vida em nome de um bem maior, a segurança de seu país.
É isto o que, acredito, eles estão fazendo. Muitos morrerão. São heróis. 
Revista ÉPOCA Peter Moon
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Uma dama cuida da aparência do samurai Seibei Iguchi, preparando-o para o um duelo de vida ou morte.
Revista ÉPOCA.

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