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GOSTO.
Amor e ódio à mesa
Impossível ficar indiferente ao aroma forte e ao sabor intenso do alho na comida. Um dos melhores do mundo é produzido na Espanha. Chama-se ajo morado
Ajo blanco: sopa fria típica da cozinha espanhola.
Se Dom Quixote de La Mancha fosse um cavaleiro de carne o osso e hoje percorresse de verdade a região central da Espanha, como imaginou seu pai literário, o romancista, dramaturgo e poeta castelhano Miguel de Cervantes (1547-1616), certamente ficaria contrariado.
Na extensa e árida paisagem onde ele vagueou no lombo do desengonçado cavalo Rocinante, produz-se atualmente um alho que grandes chefs de cozinha – o catalão Ferran Adrià, por exemplo – consideram o melhor do mundo.
Personagem-título de “Dom Quixote”, livro publicado no século 17, segundo mais importante da cultura ocidental, juntamente com “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri, superados apenas pela Bíblia, o fidalgo de La Mancha odiava esse bulbo redondo de aroma forte e sabor intenso, usado como tempero, medicamento, amuleto e infinitas destinações mágicas.
“Não comas alhos nem cebolas, para que o hálito não denuncie a vilania (grosseria, condição de camponês e plebeu) dos teus hábitos”.
Dom Quixote fez essa recomendação ao fiel escudeiro Sancho Pança, homem de origem humilde e nenhum refinamento, aconselhando-o igualmente a ser asseado e a cortar as unhas (Segunda Parte – Capítulo XLIII). O alho (Allium sativum) e a cebola (Allium cepa) são plantas semelhantes.
A capital do mais reverenciado alho espanhol é Las Pedroñeras, localidade com pouco mais de 7 mil habitantes, na província de Cuenca, em La Mancha. Neste ano, turistas passam por ali para conhecer seu terroir e um dos caminhos imaginários de Dom Quixote, no ano em que o mundo relembra os quatrocentos anos da morte do genial Cervantes.
Em Las Pedroñeras e outros municípios de La Mancha existem 3.500 hectares de ajo morado (cor de amora, roxo), único do país a receber o selo de Indicação Geográfica Protegida (IGP).
A cor que lhe dá o nome é interna, pois a casca se mostra branca. Mas os dentes já são cobertos por uma pele rosada. A cabeça se apresenta de tamanho médio, arredondada e uniforme. Reúne de 8 a 10 dentes ligeiramente curvados.
O aroma é forte, o sabor intenso e picante. Exportado para o mundo inteiro, pode ser encontrado inclusive no Brasil. No mercado internacional, só enfrenta a concorrência do alho chinês, grande e branco, com preço mais atraente, porém de qualidade gastronômica inferior.
A vantagem começa pela potência. Um dente de ajo morado equivale a três do chinês.
O alho é condimento indispensável na dieta mediterrânea, compõe o DN das culinárias italiana, francesa e grega.
Entretanto, nenhuma outra o utiliza com a mesma paixão da espanhola. “Existem muitas cozinhas no meu país”, dizia o jornalista, escritor e gastrônomo catalão Xavier Domingo (1929-1996), “mas todas têm em comum o alho”.
Os dentes do seu bulbo temperam quase todos os pratos de sal da Espanha. “No hay campana sin badajo ni sopa sin ajo” (Não existe sino sem badalo nem sopa sem alho), sentencia o provérbio castelhano.
Ajo morado: para muitos chefs, o melhor do mundo – Foto Luís Simione.
Empregam-no também em guisados de carnes e verduras, arrozes e lentilhas; em clássicos como o gazpacho andaluz, o ajo blanco (sopa fria de alho e amêndoa), as gambás al ajillo (camarões com alho), os calamares (lulas) em geral, a paella, as migas (fatias de pão temperadas e embebidas geralmente no azeite).
Mesmo na Espanha, porém, divide as opiniões. O problema não é o uso culinário do alho, mas seu aroma forte, penetrante, persistente e invasivo. Trata-se de um caso de amor e ódio à mesa. Nem a cebola, o coentro e o cominho provocam tantas reações contraditórias.
Dom Quixote não estava sozinho na sua aversão. Afonso XI (1311–1350), rei de Castela e Leão, proibiu o consumo do alho pelos cavaleiros da corte.
Mandava um soldado ficar na entrada do palácio e cheirar a boca das pessoas que ingressariam no palácio. Se apresentassem bafo de alho, ficavam proibidas por um mês de entrar.
A rainha Isabel I, a Católica (1451–1505), financiadora de Cristóvão Colombo na viagem pioneira à América, demonstrava o mesmo pavor. O alho era vetado na cozinha do seu palácio. Em um banquete, trouxeram-lhe uma comida finalizada com salsinha fresca.
Desconhecendo a ojeriza real, o cozinheiro havia picado as folhinhas na tábua de cortar alho. “O vilão está disfarçado de verde!”, indignou-se a rainha.
Segundo uma lenda, fidalgos espanhóis que partiam para expedições demoradas longe de casa deixavam uma pessoa encarregada de empanturrar suas mulheres com alho, porque o cheiro forte lhes garantiria a fidelidade conjugal.
Os antigos romanos já sabiam disso. “Por causa de um alho não se há de perder o amor”, filosofavam. Recomendavam um antídoto aos apaixonados, com o qual expulsariam o bafo do mal: mastigar grãos de coentro com talos de erva-doce ou ambos separadamente.
Mas o poeta lírico e satírico romano Horácio (65-8 a.C.) questionava o efeito do truque e aconselhava aos casais que comessem alho juntos, “para a pessoa amada não rejeitar o beijo da outra e ir embora”. Bingo!
AJO BLANCO – Sopa Fria de Alho e Amêndoas
INGREDIENTES
•    2 fatias de pão branco torradas
•    150g de amêndoas peladas e moídas
•    3 dentes de alho descascados e fatiados
•    8 colheres (sopa) de azeite de oliva
•    2 a 3 colheres (sopa) de jerez (na falta use vinho branco seco)
•    1 lance de vinagre de vinho branco
•    6 cubos de gelo
•    Sal e pimenta-do-reino moída na hora a gosto
•    250g de uvas brancas sem sementes (para guarnecer)
PREPARO
1. Amoleça as fatias de pão em um pouco de água durante alguns minutos.
2. Em um mixer, ou no liquidificador, coloque as amêndoas, o alho  e o pão amolecido, junto com a água em que ficou de molho.
3. Bata tudo, de modo a  obter um creme. Aos poucos, regue com o azeite e depois incorpore o jerez (ou o vinho branco).
4. Introduza o vinagre e transfira o creme para uma sopeira. Coloque os cubos de gelo, mexa bem e tempere com sal e pimenta.
5. Passe por uma peneira e deixe o creme na geladeira por 30 minutos, antes de servir. Leve à mesa em pratos fundos e guarneça com as uvas brancas.
Por DIAS LOPES.
J. A. Dias Lopes é jornalista desde 1968, quando integrou a equipe que fundou a VEJA. Especializado em gastronomia histórica, já publicou três livros com esse tema, A Canja do Imperador (2004), A Rainha que Virou Pizza (2007) e O País das Bananas (2014). Atualmente, é diretor de redação da Revista

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